Autobiografia de Lúcia Bettencourt
Até começar a publicar, não precisei escrever minha biografia. Não o fiz quando nasci. Uma única palavra seria o suficiente: “nasci.” Ignorante, não teria o exemplo de Tristram Shandy, que começa suas memórias ab ovo. Cansada do esforço, não teria tido ânimo de indagar sobre as condições de meu nascimento, nem sobre as impressões que possa ter causado aos presentes. Primeira oportunidade perdida, portanto.
Na escola, uma ou duas recordações poderiam ter figurado numa biografia acaso exigida. No entanto, as mestras só queriam saber de “minhas férias” e de “meu fim de semana”. Perdi, assim, a oportunidade de falar do meu maravilhamento ao descobrir que podia ler. Esse é o episódio mais marcante de minha vida: aprendi a ler, antes do que era esperado, e encontrei na leitura a melhor companheira que uma criança solitária poderia ter. Depois, escrevendo (fazia caderninhos em casa, com histórias em quadrinhos, e emprestava aos companheiros de ônibus escolar), fiz os primeiros amigos de carne e osso, sempre mais decepcionantes que os feitos nas leituras.
Lúcia Bettencourt, Richard Zimler e Ana Margarida de Carvalho aprenderam a escutar os silêncios do passado; nesta conversa no Folio 2016, moderada por Helena Vasconcelos vai falar-se de como se constrói um romance histórico – da sua actualidade e do seu futuro.
Quando casei, também não me foi exigida a biografia, embora pudesse ter escrito uma bela página: casei-me no lindíssimo Mosteiro dos Jerónimos, e passei minha Lua de Mel em Óbidos. Meus laços de afeto com Portugal são fortissimos: não apenas meus antepassados foram portugueses, mas até minha descendência, embora nascida no Brasil, tem essa nacionalidade. Meus quatro filhos, ao nascer, não me pediram a biografia, nem eu a deles. Bastava-me que se criassem saudáveis e amados.
Meu casamento foi feliz e durou até que a morte nos separasse. Custou-me muito aprender a sobreviver. Foi a escrita que me ajudou. Pouco antes de morrer, Guilherme havia enviado meus contos para um concurso, o Prêmio SESC. Essa premiação tirou-me do escuro e do vazio em que minha vida se havia transformado, me fez seguir em frente.
Então passaram a me pedir pequenas biografias, ora para me apresentar na capa de um livro, ora para uma palestra, ou antologia. Sugeriam, porém, que “escrevesse algo interessante”. Assim percebi que minha vida não era interessante. Tinha onde morar, tinha estudado em bons colégios públicos. Tinha me casado e multiplicado. Então, na primeira biografia interessante que escrevi, apresentei-me como neurocirurgiã servindo como voluntária na Guerra do Iraque, ou do Afeganistão, nem lembro. Minha editora riu muito, adorou a história, mas acabou publicando aquelas 5 linhas desinteressantes que mandei como alternativa: carioca, formada em Letras, ganhadora dos prêmios SESC, Osman Lins , ABL, etc…
Na segunda, apresentei-me como praticante de alpinismo, preparando-me para subir o Himalaia. Tratava-se de uma metáfora: escrever é sempre uma escalada, um desafio. Tem perigos e ameaças, nem sempre chegamos ao topo e, uma vez lá, descobrimos que é necessário recomeçar, como Sísifo. A organizadora do evento em que ia participar censurou-me: não havia nada literário no texto. Enviei as mesmas 5 linhas desinteressantes de sempre: Colaboradora de jornais e revistas, obras traduzidas para o inglês, o francês, o espanhol e o búlgaro, etc…
Tentei várias outras versões biográficas: navegadora, primeira mulher a fazer a órbita terrestre num paraglider, mergulhadora, habitante de florestas quase intocadas… Por mais que me tenha esforçado na criatividade, sempre acabaram ficando com as cinco linhas caretas, que, já então, incluíam nomes de novos livros publicados, inclusive infantis.
Na verdade, as vidas dos escritores se parecem: passamos a maior parte de nosso tempo lendo e escrevendo, atividades bastante solitárias. Quando lemos, vamos a todos os lugares, visitamos todos os tempos, somos herois fantásticos ou abjetos seres desprezíveis. Quando escrevemos, escolhemos um desses lugares para revisitar, alguns personagens para desenvolver, e emprestamos a eles nossos corações e todas as nossas experiências de vida. Alguns de nós, viajam bastante, amam muito (às vezes muito mal), bebem excessivamente, drogam-se, morrem cedo. Outros são funcionários públicos, nunca saem de sua terra natal, são cautelosos com as opiniões políticas, pacatos, longevos. Amamos as obras de uns e outros, independentemente de sua cor da pele, de seu gênero, de sua beleza, de seu heroísmo e de suas aventuras. Ao fim e ao cabo, o que importa mesmo é a obra. Como se diz no jogo do bicho, no Brasil, “vale o escrito”. E, no entanto… como nos interessamos por biografias de escritores, talvez na esperança de descobrir aquela fagulha que se transformou numa grande obra! Ou para nos certificarmos de que, sim, os escritores são gente como a gente. Sangramos quando nos ferem. Desesperamos frente aos obstáculos. E nos alegramos, imensamente, ao descobrirmos quem nos aprecie.