Flexágono 2022

Banda desenhada portuguesa, agora
Curadoria: PEDRO MOURA

MUSEU MUNICIPAL
Terça a Domingo – 9h30-13h / 14h-17h30
Encerramento à Segunda-feira

A segunda edição da Flexágono, uma mostra de banda desenhada contemporânea portuguesa, integrada no Festival Literário Fólio, em Óbidos, tem vários privilégios e honras em relação à sua primeira prestação.
O propósito da Flexágono é dar a conhecer alguns dos autores, menos ou mais jovens, particularmente activos neste momento, atentos às tendências de transformação social e formal desta disciplina artística. A banda desenhada, enquanto sobretudo uma arte de narrativa visual, com os seus próprios jogos de linguagem, especificidades compositivas e materiais, possui uma larga e saudável variedade de temas, estratégias comunicativas, graus emotivos, modos formais e índoles políticas. Fará todo o sentido que, num momento de atenção na “coisa literária”, haja uma preocupação em compreender os mais sofisticados gestos nesse mesmo sentido desta área criativa.
A oportunidade de estabelecer este ponto de contacto no Museu Municipal de Óbidos é também uma portentosa oportunidade de criar diálogos, peça a peça, espaço a espaço, com um património histórico e cultural, que tem tanto de local como de nacional ou em categorias mais alargadas. O convívio entre a arte original, pranchas, vinhetas e esboços, isto é, os processos de trabalho e peças individuais de banda desenhada destes autores contemporâneos com a arte sacra, pintura barroca, capitéis, retábulos, gravura, escultura e um conjunto de trabalhos gráficos de uma colecção particular não será de forma alguma chocante ou paradoxal, mas bem pelo contrário respirará a circulação mais usual da cultura e da existência humana. O direito à cidadania artística, e mesmo cultural, da banda desenhada ainda não foi plenamente conquistado, e estes gestos permitirão outras estratégias de atenção e alerta para com sensibilidades merecedoras de uma abordagem mais crítica. Por vezes, alguns dos diálogos serão mais surpreendentes, por reforçaram elos entre assuntos e elementos visuais, questões de composição ou de comunicação museográfica, ou até ecos simbólicos que se foram transmutando em significados actualizados mas cujas formas se mantêm (algo que um historiador de arte como Aby Warburg exploraria de forma intensa).
Os trabalhos destes autores portugueses em particular oscilam entre a ficção de género e a autobiografia, o ensaio de cariz mais filosófico e uma inquirição do quotidiano das relações humanas, o espectacular e o melancólico, o fantástico e o mundano. Alguns destes textos circulam sob a forma de livros, um objecto de vivência comercial e de catalogação prevista, outros em fanzines, objectos gráficos, desenhos inconjuntos, de baixa tiragem ou acesso mais limitado, mas não por isso de menor alcance. Ou até em canais exclusivamente digitais, representando outros impactos. Todos desejam a leitura, mas a sua reapresentação expositiva convida a outras atitudes de associação, quer da peça isolada quer dos diálogos propostos no espaço. Walter Benjamin explicava como um desenho deveria ser exposto horizontalmente, mas procurarmos aqui vários eixos que se cruzam, reforçando a capacidade de simultaneamente manifestarem as coisas que representam e conjurar significados.
A atenção e descoberta da produção artística e literária (e, sendo discutível, poderemos afimar até certo ponto que a banda desenhada é um acto de cerzir ambos modos numa só tessitura) deve ser feita no próprio momento em que ela respira. Um sinal da saúde cultural de um país não é a existência de olhares retrospectivos, comemorações de um passado ido, mas antes de um vivo, activo e assertivo agora.

Rita Alfaiate (Lisboa, 1992) foi acumulando alguns pequenos trabalhos no campo da banda desenhada e ilustração, mas a sua entrada fulgurante na “cena” deve-se à dilogia No Caderno da Tangerina e Tangerina (ambos Escorpião Azul, 2017 e 2019), agora reunidos numa edição integral e aumentada. Um romance de fantasia negra, que apresenta duas perspectivas nem sempre de encaixe perfeito (à la Rashomon), e que alegoriza a diferença, o isolamento e uma temível violência virada para o interior cuja súbita expressão pode ser demasiado cara. Com um sentido de dinamismo narrativo muito moderno, e linhas nervosas que asseguram a emoção frenética explorada, Alfaiate é uma autora que exige uma compreensão epidérmica das forças que transmite. Reúnem-se aqui materiais directamente dos livros e para além dele que estendem a narrativa.

A obra de João Carola (Alverca do Ribatejo, 1993) tem uma existência “estilhaçada”, no sentido em que as suas “peças” existem sob a forma de fanzines, curtas em antologias, participações em obras colectivas e ainda em objectos artísticos e/ou de exposição que expandem o campo da própria banda desenhada para materialidades novas, como as peças em acrílico. Há no seu trabalho uma constante interrogação – no sentido de dúvida, de gesto que pretender repartir, de um voltar atrás e “falhar de novo”, como Beckett – sobre a forma, vasculhando assuntos, géneros e tons que, menos do que “inconstantes”, espelham as vontades e máscaras sociais que vamos usando e trocando ao longo dos dias. Por vezes, são os próprios protocolos da leitura programada da banda desenhada que se baralham, a sua relação física, a progressão narrativa. Por outras, há antes uma ludicidade quase juvenil em expressar-se num “grau zero”. E, nos momentos de maior felicidade criativa, ocorre tudo ao mesmo tempo.

Kachisou (Cátia Sousa, Faro, 1994) pertence a uma geração de autores profundamente influenciados pelos modos figurativos e dinâmicas narrativas advindas da banda desenhada e animação japonesas, ou mangá e animé, usualmente compreendidas pelas suas prestações mais populares, juvenis e formulaicas, mas cuja diversidade é tão significativa como qualquer outro campo de criação cultural (a grande referência aqui, parece-nos, é Naoki Urasawa). A autora tem tido a capacidade de criar histórias no seio dessa linguagem que revelam uma atenção muito sensível à comunicação humana, aliada a um desenho e composições conducentes a uma tranquilidade menos comuns, não apenas lhe angariando toda uma série de sucessos em concursos e exposições da especialidade, como aos poucos junto a um público cada vez mais alargado. A sua exposição maior deu-se graças à sua própria colecção de três histórias curtas, Weak (Bubok Portugal, 2020), prevê-se a saída de um novo livro com uma distribuição maior em termos nacionais e comerciais e, naturalmente, as redes sociais são um factor premente.

O trabalho profissional de Júlia Barata (Coimbra, 1981) divide-se entre a arquitectura e a ilustração, mas é na banda desenhada, alguma pintura e em “desenhos soltos” que a autora encontra a mais desvelada das expressões pessoais, deixando liberta a mais vincada emoção, mesmo que esta se revele mordaz, bombástica, e menos polida em termos sociais. A autora não está interessada, de forma alguma, em converter-se às expectativas dos outros do que “devemos dizer”, mas sim em deixar aberta, como uma ferida, a sensação traumática dos dias. Gravidez e Quotidiano de Luxo (ambos Tigre de Papel, 2017 e 2019) são duas obras em as linhas nervosas, frenéticas, têm angulos acutilantes nos quais devemos ter cuidado para não nos cortarmos. Mas isso é inevitável. Destacamos aqui uma série de pinturas que se coordenam entre si como um ciclo, série ou até sequência, se o espectador conseguir criar as linhas que as organizam numa história.

Joana Estrela (Penafiel, 1990) é uma artista que conduz os seus desenhos quer em projectos de colaboração quer a solo, em áreas tão distintas como a literatura para jovens, o álbum ilustrado infantil, e a banda desenhada, e esta pode desdobrar-se em projectos de reportagem implicada (Propaganda, 2014) ou o Bildungsroman adolescente (Pardalita, 2021). Proponente de um desenho a linhas sinuosas minimais, e apenas alguns apontamentos expressivos, de cor ou mancha ou textura em locais acertados, todo o seu trabalho é atravessado sobretudo por uma tranquilidade apenas aparente, que mal contém uma urgência poderosa de emoções sísmicas da vida das suas personagens. Temos acesso aqui aos elementos “assinados” pela sua mão, que se constitutem como os primeiros elementos que depois se acumulam e coalescem num projecto livresco, neste caso um foco grande em Eglé and the Snake (Kuš, 2020)

Depois de um par de fanzines de circulação limitada, o livro Hoje Não (Chili Com Carne, 2021) assaltou a atenção dos leitores portugueses. Uma descrição superficial descrevê-lo-ia como um “diário do confinamento do Covid”, mas ao contrário da esmagadora maioria das obras da mesma taxonomia, que se perdiam na mesma mão-cheia de observações humorísticas e tropos pré-gastos, Ana Margarida Matos (Montijo, 1999) transforma esta ocasião numa profunda elaboração gráfica-ensaística em que interroga a sua própria interioridade, identidade, assim como a organização social em que nos encontramos, e aos poucos interpelando-nos sobre todas as possibilidades alternativas a essa mesma situação. Ao mesmo tempo, esse livro (e os objectos que o acompanham) é um campo de reinvenção dos próprios instrumentos de significação da banda desenhada, o que nos convida a vasculhar entre pranchas originais, diários gráficos, cadernos de trabalho e outros objectos.

Numa primeira abordagem, as obras individuais de Rodolfo Mariano (Coimbra, 1981) – espraiadas num sem número de fanzines, curtas em antologias, participações em concursos, webcomics, e outras plataformas (se bem que o livro Bottoms Up, Chili da Carne, 2020, torne parte dos trabalhos mais acessível) – parecem munir-se de todo um rol de tropos clássicos da dita “alta fantasia”: guerreiros bárbaros, mercenários, magos, caveiras falantes, objectos mágicos e toda a espécie de criaturas oraculares, num território de ficção medievalista, ainda que surja a ocasional nave espacial. Mas a leitura dos diálogos, das histórias, demonstrará que o propósito está em apresentar pequenos pensamentos sobre a vida de todos os dias, o cansaço perene da labuta diária, a melancolia de bolso, num paradoxo profundo que não deixa de ser ao mesmo tempo hilariante. Prova de que a equação entre “forma” e “conteúdo” não é mais que um engodo analítico, é a compulsão destas narrativas que fará o leitor encontrar, para além das roupagens épicas, uma brutal desconstrução do desenraizamento contemporâneo. Porém, ao mesmo tempo, não surgem questões e temas seculares?

Se o trabalho de linhas delicadas, suaves e de cores ternas de Bernardo Majer (Lisboa, 1990) se tornou mais visível com trabalhos criados com outros argumentistas, destacando-se Toutinegra, com André Oliveira (Polvo, 2019), o seu livro a solo Estes Dias (Polvo, 2022) foi uma vibração quase inesperada. Reunindo seis relatos curtos, com assinaturas gráficas distintas, sobre vidas ordinárias, Majer revela-se um exímio observador do extraordinário dos nossos quotidianos, mormente no que os não-ditos podem estimular. As suas personagens podem ocultar no seu interior uma tensão indizível, mas não se expressam através de explosões melodramáticas. Bem pelo contrário, com uma contenção à Ozu, o conflito parece convidar a uma inércia interior, mais lesiva e duradoura, inclusive nas emoções do leitor. Temos igualmente acesso nesta mostra a alguns dos cadernos onde o autor “escreve” (as aspas devem-se a que o desenho faz parte dessa literal “caligrafia”, isto é, bela escrita), revelando ainda outra camada de intimidade do acto criativo.

Nota: poderão encontrar alguns dos títulos disponíveis destes autores, inclusives trabalhos mostrados nesta mostra, na Tenda Vila Literária, na Praça de Santa Maria, durante o Fólio.