Quando a Ler Devagar me convidou para a curadoria do FÓLIO Mais desta edição, fiquei muito entusiasmada com o convite, decidi quase imediatamente que iria colocar em foco obras não hegemônicas, escritas a partir da temporalidade dos afetos, narradas a partir das vivências, mas com marcada voz coletiva. Propus, assim, três lugares para o encontro, que chamei de casas: a Casa Escrevivência, a Casa Fulgor e a Casa Floresta.
Muitos são os cruzamentos entre estas três casas, e muitos são os escritores e as escritoras que as compõem e representam. A primeira convidada foi Conceição Evaristo, escritora que cunhou o conceito de Escrevivência. Para a Casa Fulgor, quis evocar Maria Gabriela Llansol e criar uma ambiência a partir da sua obra, convocando um prêmio para jovens artistas: O Texto Vivo, uma ficção visual à volta de conceitos como o horizontalismo radical e a inexistência de hierarquia entre o humano e o não humano; assunto que entra imediatamente em diálogo com a Casa Floresta, composta por uma literatura com clara conexão com o ancestral, com a comunidade e com a natureza, narrada sobre o eixo da interdependência de todas as formas viventes orgánicas e inorgánicas.
Num sentido lorquiano, quis levantar a poesia do livro e erguê-la em um gesto. E, assim como acontece com “O Texto Vivo”, poderemos visitar “O Jardim que o Pensamento Permite”, que cruza as escritoras Maria Gabriela Llansol e Maria Zambrano, ambas inspiradas pelo filósofo Sufi Ibn Arabi. Um jardim que torna possível o pensamento como arte de viver (cuidar) o comum (multiespécie). Para além das actividades dos parceiros, muitas vezes decididas conjuntamente, contaremos com exposições visuais e sonoras, diversas oficinas, etc. Poderemos participar em “A Roda de Configurações de Mundos”, num exercício de reimaginação colectiva que, coloca-nos a ouvir outras cosmogonias e práticas fora das totalidades, a questionar os mundos que habitamos
e incita-nos a criar figurações de mundos diversos.
Assim, as escritas destas três Casas se iluminam dinamicamente, numa espécie de clareira onde se entretecem improváveis e necessárias alianças, onde as fronteiras entre o eu, o outro e nós, entre o real e o imaginário, se dissolvem para abrir caminho a outras formas de compreender e habitar o mundo, os mundos. Neste diálogo intertextual entre as três casas, resulta que a Escrevivência e esse “escre-ver” llansoliano o livro do mundo, dos mundos, amplificam com mais vigor o vivo, tornando-o mais visível, ou tornando-o mais audível, e, para isso, é imprescindível para nós “legentes” parar, ficar em silêncio, lembrar-nos de como escutar. Escrever e ler a partir daqui, é abrir uma porta para a multiplicidade de vozes não hegemônicas, insubordinadas e fulgorizantes, capazes também, sem dúvida, de ouvir e narrar as inquietantes mensagens da natureza.
Candela Varas
Curadoria FÓLIO Mais
A Ler Devagar, co-fundadora e impulsionadora inicial do Festival FÓLIO e da Óbidos Vila Literária, entrou neste ano de 2024 numa nova fase, após um período de luto. Uma fase de crescimento e afirmação da sua presença como actor fundamental e empenhado na promoção da Leitura, dos Livros, das Artes e da Cultura. Este último ano assistiu à abertura de um novo espaço cultural em Lisboa, a Casa do Comum do Bairro Alto, um centro cultural com Livraria, Sala de Cinema e Concertos e um espaço dedicado à leitura e à (in) Quietação, o Museu da Preguiça.
Apostando no reforço da presença em Lisboa e em Óbidos, continuamos a apelar ao espírito de inquietação e audácia que presidiu à abertura da primeira Ler Devagar, no Bairro Alto, há 25 anos.
Através das nossas livrarias da Lx Factory e CCBA (em Lisboa), de Santiago e do Mercado em Óbidos procuramos, como sempre, estimular o Encontro, a Reflexão, a Discussão, a prática e a fruição das várias formas de Arte e de Vida, e sobretudo a Liberdade… e a Inquietação.
Nesta edição do FÓLIO, a Ler Devagar lançou o desafio a Candela Varas para criar uma linha curatorial que enriquecesse o programa, mantendo o compromisso primordial do FÓLIO Mais.
O FÓLIO Mais é a parte do todo, que este ano integra na sua programação mais de uma centena de acontecimentos, entre propostas nossas e desafios dos parceiros aliados da literatura, sejam eles actores locais, Editores, livreiros, Institutos, universidades, Associações Culturais ou coletivos informais, Fundações, Autores, pensadores, criadores e artistas. É o segmento do festival que se ocupa de transformar espaços, proporcionando encontros surpreendentes em lugares
inesperados, desafiando as inúmeras formas artísticas com que a literatura se pode relacionar.
Esperamos que esta nona edição do FÓLIO, seja só inquietação. Porquê? Porquê, não sabemos ainda…
Joana Pinho
Ler Devagar